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sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27188: Notas de leitura (1835): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 10 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Agosto de 2025:

Queridos amigos,
Continuando na companhia de Usodimare e de Cadamosto, pareceu-me útil transcrever o que eles dizem do Cabo Verde continental, isto na Primeira navegação, na Segunda irão referir a descoberta de ilhas do arquipélago, matéria que não é consensual entre os historiadores da expansão portuguesa. A navegação Segunda prende-se com a descoberta das ilhas de Cabo Verde, seguramente que nalguma delas puseram os pés em terra, como mencionam: "Mandei dez homens bem providos de armas e bestas que deviam subir à dita ilha por uma parte onde ela era multuosa e alta, para ver se achavam alguma coisa ou se avistavam outras ilhas. Quando estiveram na montanha, houveram vista de três outras ilhas grandes, das quais não nos tínhamos apercebido." Viajaram depois até ao rio Casamansa. Peço a atenção do leitor para as notas de Vitorino Magalhães Godinho. O próximo e último artigo prende-se com a navegação de Pedro de Sintra. Lembro ao leitor mais interessado que na internet, pondo "relações comerciais com a Senegâmbia nos séculos XV e XVI", encontrar-se-ão textos, alguns deles produzidos em universidades brasileiras.

Um abraço do
Mário



Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 10

Mário Beja Santos

Para concluir a Primeira navegação de Usodimare e de Cadamosto, importa fazer referência à questão da descoberta do Cabo Verde, escrevem o seguinte, dando a possibilidade ao leitor de distinguir o Cabo Verde continental das ilhas pretensamente descobertas por eles e que gozam do nome de Cabo Verde:
“Este Cabo Verde chama-se assim, porque os primeiros que o descobriram, que foram portugueses, um ano antes que eu fosse a estas partes, o acharam todo verde pelas grandes árvores que ali se conservam viçosas por todo o ano; e por esta causa lhe foi posto o sobredito nome, assim como o de Cabo Branco àquele de que antes falámos, que foi achado todo arenoso e branco. Este Cabo é muito belo e alto de terreno e tem sobre a ponta duas lombadas, isto é, dois montículos, e mete-se bastante pelo mar dentro: sobre ele e à roda estão muitas habitações de negros, casas de palha, todas junto à costa e à vista dos que passam; e estes negros são ainda do sobredito reino do Senegal. Pegam com ele alguns bancos, que saem pelo mar, quase meia milha; e tendo-o dobrado achámos três ilhas pequenas não muito longe da terra, desabitadas, e abundantes de árvores viçosas, e grandes: pelo que tendo necessidade de água deitámos âncora em uma delas, que nos pareceu maior, e mais frutífera: para ver se ali achávamos alguma fonte; porém descidos em terra não vimos senão um lugar onde parecia nascer alguma água, que não nos pode servir.

Nesta ilha achámos muitos ninhos e ovos de diversas árvores, para nós desconhecidas: e aqui estivemos todo aquele dia pescando com redes e anzóis grandes; e apanhámos infinitos peixes, e dentro deles dentais e douradas grandíssimas do peso de doze a quinze libras cada uma. No dia seguinte partimos fazendo-nos à vela; e seguindo a nossa derrota, navegando sempre à vista de terra, notámos que além de Cabo Verde se mete um golfo para dentro; e a costa é toda terra baixa, e abundante de belíssimas e grandessíssimas árvores verdes, que não perdem a folha em todo o ano, como acontece às nossas; mas nasce primeiro a folha, antes que a outra caia: vão estas árvores até sobre a praia, a um tiro de besta, de sorte que parece que vem a beber no mar, o que é belíssimo para ver: e segundo o que eu entendo, apesar de ter navegado por muitos lugares do Levante e Poente, nunca vi terra mais bela do que esta me pareceu, e é toda banhada por muitos rios e regatos pequenos e de pouca monta, pelos quais não podiam entrar navios grandes.”


E vamos agora iniciar a navegação Segunda, a que vai levantar grande discussão entre historiadores. Dá-se a explicação do acordo estabelecido entre Cadamosto e Usodimare, para armar uma caravela, partiram de Lagos, fizeram-se às ilhas Canárias, vão por aí fora, viajaram pelos rios da Senegâmbia, depois do rio Gâmbia saíram para o mar, viram ser aquela terra muito baixa com árvores verdes e belíssimas, navegaram dois dias pela costa sempre à vista de terra, descobriram ao terceiro dia a foz do rio de razoável grandeza, mas muito menor que o rio de Gâmbia. Foram intérpretes a terra para saber notícias do país, voltaram dizendo que o rio se chamava de Casamansa, era o rio do Senhor de Casamansa que habitava rio acima coisa de trinta milhas, notou-se que do rio Gâmbia até ao de Casamansa eram coisa de vinte e cinco léguas que fazem cem das milhas portuguesas. Findamos aqui a descrição da navegação Segunda.

Passa-se para o capítulo sexto deste volume III, temos a exploração do litoral africano desde o rio Geba até à mata de Santa Maria, fica-se assim com a dimensão daquela área que durante séculos se designou Senegâmbia. O texto invocado por Vitorino Magalhães Godinho é proveniente do Esmeraldo, de Duarte Pacheco Pereira:
“E muitos cuidam que este nome de Serra Leoa lhe foi posto por haver ali leões, e isto é falso porque Pêro de Sintra, um cavaleiro do Infante D. Henrique que por seu mandado esta terra descobriu, por ver uma terra tão áspera e brava lhe pôs o nome Leoa, e não por outra causa. Esta serra tem uma ponta que há o nome Cabo Ledo; e esta serra Leoa se aparta do círculo da equinocial em ladeza oito graus, e estes mesmos graus se levanta ali o polo ártico sobre o círculo do hemisfério… e até aqui descobriu o virtuoso Infante D. Henrique.

Muitos benefícios tem feito o virtuoso Infante D. Henrique a estes reinos de Portugal, porque descobriu a ilha da Madeira em 1420 e a mandou povoar e mandou à Sicília pelas canas de açúcar, que mandou plantar na Madeira, os mestres sicilianos ensinaram a fazer aos portugueses; a qual ilha agora rende trinta mil cruzados de ouro ao mestrado de Cristo; isso mesmo mandou à ilha de Maiorca por um mestre Jácome, mestre de cartas de marear, na qual ilha primeiramente se fizeram as ditas cartas, e com muitas dádivas e mercês o houve nestes reinos, o qual as ensinou a fazer àqueles de que os que em nosso tempo vivem aprenderem; isso mesmo fez povoar as ilhas dos Açores, a que antigamente Górgonas se chamaram, tudo isso este virtuoso príncipe com outras muitas boas coisas tem feito, que escuso dizer, além de descobrir Guiné até à Serra Leoa, da qual serra pusemos aqui a pintura pelo natural por se melhor entender; e aqui faz fim o primeiro livro.”


Recorde-se que Duarte Pacheco Pereira fala das etiópias da Guiné, para o historiador Magalhães Godinho, o Esmeraldo, redigido de 1505 a 1520 (?), não ressuma já a frescura das impressões diretas e singelas, antes respira o ambiente de uma lenda henriquina já formada. Lembra também que a cana sacarina era já cultivada na Andaluzia e no Algarve nos princípios do século XV e foi introduzida no condado de Coimbra pelo Infante D. Pedro. “Não é, porém, inverosímil que D. Henrique tenha contratado mestres da Sicília, não propriamente para ensinarem o fabrico do açúcar, mas para ensinarem aos portugueses os processos mais aperfeiçoados nesse fabrico.”

Como já se referiu, as notas de Magalhães Godinho são a prova provada que mudara a escola historiográfica portuguesa. O cientista não se escusa a clarificar o seu pensamento:
“Vê-se como é tacanho o critério nacionalista, patrioteiro, de que frequentemente tem enfermado a história da expansão nos séculos XV e XVI, e isto não só da parte de Portugueses (em reação, aliás, contra o roubo das suas lídimas glórias de que por vezes tem sido objeto), mas também da parte de Italianos, etc. A história tem de estar acima das paixões locais, regionais, nacionais ou rácicas, ou de classe, porque deve tender à validez universal. Ora, o que as fontes nos mostram é que, como não podia deixar de ser, não só houve estrangeiros a participar nas navegações portuguesas, como ainda estas só foram possíveis pela utilização de um cabedal de conquistas autenticamente internacional. Assim, os barcos portugueses aproveitaram a vela triangular latina, que aparecera no fim da Alta Idade Média, o leme, invenção do século XIII, a vela redonda, que remonta pelo menos ao quarto milénio antes de Cristo, os processos de construção naval que desde o Calcolítico se foram criando e aperfeiçoando; a náutica astronómica, criação portuguesa, é a convergência de descobertas e invenções como a do astrolábio e a das tábuas solares e a do sistema cosmográfico, que ascendem à civilização helénica, passando pelos muçulmanos e judeus medievais; e a bússola, outro instrumento basilar da navegação do mar alto, não vem da longínqua China ou Tartária, não foi adotada e modificada pelos nautas mediterrâneos e destes não é que passou à Península Ibérica? A cartografia portuguesa nasce das cartas mediterrâneas, dos dois grandes centros das Baleares-Catalunha e da Itália, o que não a impediu – antes foi condição, alicerce – de lançar o seu voo próprio.”

Quanto aos seus comentários ao Esmeraldo, recorda Duarte Pacheco Pereira acentua fortemente os lucros que a Nação retirou das navegações; “mesmo que D. Henrique tivesse falecido com défice provocado pelas viagens da sua iniciativa – o que de modo algum está provado – percebe-se claramente que a sua ação podia visar, visava de facto objetivos económicos; é claro que o proveito almejado podia ser não pessoal ou da sua carta, mas o do Reino em geral ou de certos grupos em especial: porque é que se há de erradamente supor que toda a política económica visa o enriquecimento de quem a traça e executa?”

No próximo e último texto concluir-se-á este capítulo do volume III sobre a exploração do litoral africano, falando de Fernão Gomes, de Pedro de Sintra… e das notas sempre preciosas deste grande historiador.


Vitorino Magalhães Godinho, Ministro da Educação e da Cultura.
Imagem dos arquivos da RTP, com a devida vénia
Vista de Praia, Cabo Verde, no século 18. Imagem publicada na obra A Voyage to Cochin China, in the years 1792, and 1793 ... de Sir John Barrow.
(continua)
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Notas do editor

Vd. post de 29 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27165: Notas de leitura (1833): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 9 (Mário Beja Santos)

Último post da série de1 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27173: Notas de leitura (1834): "A Corja de Batoteiros", por Rui Sérgio; 5livros.pt, 2019 (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27122: Notas de leitura (1831): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 7 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Julho de 2025:

Queridos amigos,
Não querendo ser repetitivo quanto aos propósitos a que se associa este projeto, recordo que aqui se procuram mostrar documentos numa certa sequência cronológica das sucessivas viagens de exploração e instauração de portugueses na Costa Ocidental africana até chegarmos à Senegâmbia. Presença inequivocamente nas orlas dos rios e rias, nunca houve objetivo de ocupação, cedo houve entendimento de que se impunha fazer acordos e superar as atmosferas de hostilidade. Houve que fazer a fortaleza de Arguim por motivos de segurança, pelo adiante se irá falar de entrepostos. Neste texto faz-se uma síntese dos seis importantes capítulos enumerados por Magalhães Godinho, destaca-se a carta do genovês Usodimare aos seus credores, referindo o desastre na primeira viagem e esperançado no êxito da segunda. Como já nos habituámos, as notas de Magalhães Godinho são altamente explicativas, Usodimare e Cadamosto vinham ao mesmo, procuravam o ouro e a malagueta, o historiador mostra que há muitos elementos errados de Usodimare quanto às distâncias e dá-nos um apreciável quadro explicativo quanto aos mitos e mistificações à volta do lendário Preste João.

Um abraço do
Mário


Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 7

Mário Beja Santos

Os dois primeiros volumes de Documentos sobre a Expansão Portuguesa, de Vitorino Magalhães Godinho, foram editados na década de 1940, este terceiro, que vamos hoje falar, foi dado à estampa em 1956, não pela Gleba, mas pelas Edições Cosmos. O seu conteúdo é de uma extrema variedade e riqueza.
O primeiro capítulo aborda a pirataria e o comércio, um vasto leque de assuntos desde a importação de cereais, a partilha de escravos, a guerra de Corso no Mediterrâneo, a viagem ao Rio do Ouro, os assaltos às Canárias para aprisionar escravos, o comércio com Marrocos e Guiné.
Segue-se um capítulo dedicado à primeira navegação de Usodimare e Cadamosto, em 1455, navegação que vai das Canárias a Porto Santo e Madeira, ao Cabo Branco e à ilha de Arguim, e, com destaque para o propósito que mantemos nestes comentários, a viagem em que eles analisam os Azenegues, o Reino do Senegal, no país de Budomel.
No terceiro capítulo o historiador analisa a navegação segunda de Cadamosto e Usodimare, o tão controverso descobrimento das ilhas de Cabo Verde, a viagem pelo Rio de Casamansa e já dentro do território da atual Guiné.
O capítulo quarto é dedicado à toma de Alcácer Ceguer.
No capítulo seguinte, faz-se a apreciação num conjunto de documentos como os de Duarte Pacheco Pereira, Valentim Fernandes e João de Barros.
No sexto e último capítulo, Magalhães Godinho disserta sobre a exploração do litoral africano desde o Rio Geba até à Mata de Santa Maria, aqui se fala da navegação de Pedro de Sintra, por exemplo.

Dada a riqueza deste acervo, entendi que se impunha uma escolha de vários textos que ajudem a compreender como se processou a presença portuguesa desde a segunda metade do século XV aos inícios do século XVI.

Começa-se com uma carta de Antoniotto Usodimare dirigida aos seus credores, tem a data de 12 de dezembro de 1455:
“Respeitáveis irmãos. Quanto de mim devem estar descontentes, posso-o bem calcular, visto que não basta ter o que é vosso, como ainda é necessário dar-vos notícias más acerca das vossas coisas. Quis esta minha sorte que eu me fizesse passar numa caravela às partes da Guiné. E cheguei aonde nunca qualquer cristão chegará; e encontrado o Rio de Gâmbia, que tem uma boca larguíssima, entrei nele sabendo que nesta região se colhe ouro e malagueta. Os pescadores da região atacaram-me com arcos e com setas envenenadas, julgando que fôssemos inimigos.

E eu, vendo que não nos queriam receber, vi-me obrigado a regressar, e a cerca de setenta léguas daí um nobre senhor negro deu-me quarenta escravos e alguns dentes de elefante, papagaios e um pouco de almíscar, em troca de alguns panos que lhe apresentámos. E conhecido o meu desejo, mandou comigo ao senhor Rei de Portugal um secretário seu com alguns escravos. Este secretário compromete-se a tratar paz com aquele Rei de Gâmbia.

E o senhor Rei, vendo o que se passava, queria excluir-me de tal empresa, mas graças aos rogos de tal secretário, concordou que eu vá a essas partes com esse secretário. Por isso, em nome de Deus, volto a fretar uma caravela, na qual seguirei, e levarei um carregamento dos servidores do Senhor Infante, e espero com o negócio equilibrar todo o meu futuro. E dentro de menos de dez dias enviarei este embaixador numa caravela a fim de que vá tratar a paz; entrega-me todos os seus haveres para que eu os leve na minha caravela. Por tal razão convém-me, senhores, ver por esta vez ainda o que fará esta minha sorte; se me não tivesse sido até aqui tão adversa, viver podia com grande esperança pelo que me narra este secretário, coisas que vos pareceriam vãs se vo-las escrevesse.

Na verdade, pela terra firme faltavam menos de trezentas léguas até o país do Preste João, não digo até à sua pessoa, mas sim até onde começa o seu território; e se me tivesse podido demorar, teria visto o Capitão do Rei de Melli, o qual se encontrava a seis jornadas de nós com cem homens, e com ele estavam cinco cristãos do Preste João, e falei com alguns do seu exército. Encontrei um da nossa nação, creio que das Galés Vivaldi, as quais se perderam há 170 anos, o qual me disse, e assim o confirma este secretário, que da sua estirpe só ele restava. E outro falou-me dos elefantes, unicórnios, gatos da algalia e outras coisas muito estranhas e de homens com cauda e que comem os filhos. E a razão por que não pude demorar foi porque me faltaram os víveres e dos seus [dos negros] mantimentos não podem os homens brancos de modo algum alimentar-se sem adoecer e morrer, só os podem comer os negros que lá nascem. O ar, porém, é ótimo, e a terra a mais bela que há sob o céu e está quase no equinócio; no mês de julho os dias têm doze horas e meia e as noites onze horas e meia.

Escrevo-vos todas estas coisas se bem que esteja certo de que vos seria mais grato receber o que é vosso e dos outros [credores] do que ouvir tais notícias. É necessário que tenham paciência durante seis meses, tanto mais que me inscrevo no seguro, o que certamente não seria necessário dado que aqueles mares são como as águas do porto daí.

A presente carta destina-se a todos os credores; estes devem convencer-se, e vós com eles, que se eu tivesse podido contentá-los pagando-lhes não me teria metido em tal aventura com uma só caravela. Talvez venha a acontecer pelo melhor; por isso tenham paciência, pelo amor de Deus. Vosso Antonius Ususmaris.”


Magalhães Godinho fala-nos da família de Usodimare, uma antiga família genovesa. Voltará a Génova desafogado graças aos lucros da segunda viagem à Guiné. Godinho estranha a referência que ele faz ao Rio Gâmbia, já fora descoberto pelos portugueses, considera que as distâncias que ele refere são erradas. O ouro e a malagueta eram também os objetivos do veneziano Cadamosto, o que comprova que o comércio italiano estava interessado no descobrimento desta nova rota. Cadamosto irá também referir na sua relação de viagem que quando estava para partir para o sul do Cabo Verde chegou Usodimare, seguiram viagem juntos, e confirma que foram hostilmente recebidos no Rio Gâmbia. A carta de Usodimare aos credores omite o encontro. De forma detalhada, Godinho debruça-se sobre o Preste João, quando começaram as referências a este, as lendas e mistificações. Recorde-se que durante os séculos XII e XIII os cristãos procuraram-no e localizaram-no na Ásia; Marco Polo identificou-o como um chefe turco. Os Mamelucos do Egito impediram durante as cruzadas a entrada na Abissínia aos cristãos, com o receio de uma coligação que os colocassem entre dois fogos. Oito dominicanos enviados por João XXII conseguiram em 1316 penetrar na Abissínia e realizar conversões ao catolicismo. Em 1402 Veneza recebia uma embaixada enviada pelo négus David I, a qual trazia leopardos e arómatas (bálsamos) para presentear os europeus.

Iremos seguidamente ver o relato da navegação primeira de Cadamosto.


(continua)
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Notas do editor

Vd. post da 15 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27100: Notas de leitura (1829): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 6 (Mário Beja Santos)

Último post da série de 18 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27130: Notas de leitura (1830): "África Contemporânea", por Castro Carvalho, editado em S. Paulo - Brasil, 1962 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 14 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24398: Historiografia da presença portuguesa em África (372): Revista de História, n.º 13, Janeiro-Março, Ano IV, 1953 - Um texto fundamental para o estudo da História da Guiné: Fontes quatrocentistas para a geografia e economia do Saara e da Guiné (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Novembro de 2022:

Queridos amigos,
Sem qualquer rebuço, escrevo insistentemente que a minha dívida com a Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa não tem preço. Ali me ajudam a encontrar textos de enorme valia para o estudo da História da Guiné. Ando eu à procura de uma arrumação sobre os textos fundamentais do século XV para o livro que estou a preparar Guiné, Bilhete de Identidade e concluo, depois de ler este admirável ensaio de Vitorino Magalhães Godinho que só é novo aquilo que se esqueceu ou se desconhece (em tantos casos, entenda-se, a genialidade da inovação também comanda a vida). Aquele que terá sido o maior historiador português do século XX, deixa bem claro que a obra de Zurara teve contributos de outrem, que Cadamosto era naturalmente um homem experiente e revelou-se um notável relator de viagens de grande importância para o futuro do conhecimento da costa ocidental africana; e que o Esmeraldo, de Duarte Pacheco Pereira marca a passagem de um cultura baseada no "ouvir dizer" para uma visão e um sentido da precisão e exatidão, é o pontapé de saída para um conhecimento científico na alvorada do Renascimento.

Um abraço do
Mário



Um texto fundamental para o estudo da História da Guiné:
Fontes quatrocentistas para a geografia e economia do Saara e da Guiné


Mário Beja Santos

Foi uma manhã abençoada, daquelas em que mudamos a rotação do olhar, basta embrenharmo-nos na leitura do ensaio para entender como há cerca de 70 anos, aquele que já era a grande promessa da historiografia portuguesa, Vitorino Magalhães Godinho, então a trabalhar no Centre National de la Recherche Scientifique, em Paris, já tinha esboçado o estudo das fontes matriciais que permitem o conhecimento que detínhamos da geografia e gentes da Guiné. Trata-se de um trabalho publicado numa publicação brasileira, Revista de História, n.º 13, Janeiro-Março, Ano IV, 1953. Revista de grande prestígio editada em São Paulo, nela irão colaborar outras importantes figuras da cultura portuguesa, como Joel Serrão ou Barradas de Carvalho.

O artigo intitula-se Fontes Quatrocentistas para a Geografia e Economia do Saara e Guiné. Vejamos sumariamente a argumentação do eminente historiador. Os cronistas marcam no Cabo Não o termo inicial dos Descobrimentos portugueses. Para o sul do Cabo Não pode dizer-se que não se realizaram conquistas e ocupações permanentes, no século XV e primeira metade do século XVI. Os intrusos lanceiam mouros, azenegues e negros, assaltam aldeias, roubam o que podem – como em Marrocos; mas descem do navio à praia, internam-se e regressam ao mar. Não são cavaleiros e escudeiros, instalados em praças fortes; são homens de bordo que ocasionalmente calcorreiam os caminhos de terra.

Há relatos, testemunhos dos próprios navegadores e mercadores onde perpassa um espírito muito diferentes do que anima as crónicas. Têm a frescura da visão direta que o cronista não pode dar. Atenda-se às fontes, as dos cronistas, as dos viajantes, mercadores, nautas.

A primeira das fontes é a Crónica dos Feitos da Guiné. O investigador Costa Pimpão, em resultado da análise que efetuou à obra, considera que se trata da cerzidura de duas obras diferentes: uma, a Crónica dos Feitos da Guiné propriamente dita, e a outra uma Crónica ou Livro dos Feitos do Infante D. Henrique, trabalho que terá sido efetuado, segundo Duarte Leite, pelo próprio Zurara. E o historiador põe na mesa a argumentação de diferentes especulações com o nome de Afonso de Cerveira como o primeiro autor da Crónica da Guiné. Tudo leva a querer que a questão é insolúvel. A perda da crónica de Cerveira, presumivelmente fonte quase exclusiva da obra de Zurara, fere irremediavelmente incerteza o valor da Crónica dos Feitos da Guiné que até nós chegou.

E o historiador enuncia as conclusões de Duarte Leite quanto ao valor da Crónica de Zurara: destina-se a narrar os feitos dos portugueses em África, quer dizer, a ser uma crónica de ações guerreiras, não é uma crónica dos Descobrimentos; as distâncias que aponta estão todas erradas por forte excesso; raras vezes apresenta as distâncias; omite frequentemente as datas de partida das viagens e nunca refere as datas de regresso; é muito pobre de informações no que respeita à maneira como se organizavam as expedições, etc., etc. Temos de reconhecer que as perplexidades se amontoam ao pretendermos utilizar a Crónica da Guiné para estabelecer o estudo económico e social das populações com quem os portugueses entraram em contacto.

Quando transitamos para a segunda em data das fontes que se reportam ao descobrimento da Guiné, o panorama muda integralmente. As Navegações de Alvise de Cadamosto são obras de um navegador e mercador que as escreveu em 1456 (ano da sua segunda viagem) e 1483 (ano presumível da sua morte). É muito natural que as Navegações se baseiem em apontamentos de bordo. Cadamosto não é o conservador de um arquivo, não é um homem de biblioteca, é o homem que viajou largamente, conhece a Itália, o Egito, Creta, o Norte de África, a Flandres, Portugal, a Guiné. É certo que em 1455 embarcou numa caravela, fez escala pelas ilhas de Porto Santo e Madeira e arquipélago das Canárias, navegou para o Sul, passando o Cabo Branco e ilha de Arguim, visitou a foz do rio Senegal e o país de Budomel, dobrou o Cabo Verde, chegou à Gâmbia. No ano seguinte, na companhia de Antoniotto Uso di Mare teriam descoberto Cabo Verde, teriam chegado ao rio Geba e aos Bijagós. Podemos ficar com uma quase certeza de que Cadamosto escreveu sobre o que viu, dispunha de uma atitude mental de curiosidade pela flora e fauna, pelos costumes, crenças e formas de organização dos povos que não encontramos nessa data para além dele em Portugal.

A conclusão análoga chegaríamos se comparássemos as Navegações de Cadamosto com as de Pedro de Sintra. As de Pedro de Sintra são muito mais concisas e mais pobres em dados sobre a natureza e os indígenas, é uma quase seca enumeração dos lugares percorridos por aquele navegador até 1462. Seja como for, a Navegação de Pedro Sintra é obra escrita ou ditada por um escrivão da época henriquina e, como tal, um excelente padrão dos diários de bordo, ao começar a segunda metade do século XV. A Navegação de Pedro Sintra descreve-nos a costa africana desde o Geba até à mata de Santa Maria.

Numa coletânea de obras sobre a expansão portuguesa, compilada por Valentim Fernandes entre 1506 e 1507, vêm insertos três textos latinos; trata-se de uma relação do descobrimento da Guiné redigida em latim sobre o relato (oral ou escrito?) que lhe fez Diogo Gomes. O que na Relação é de facto do antigo navegador e o que de imputar-se ao alemão não é fácil descriminar. Na enumeração e narrativa das navegações até 1448, há evidentes discrepâncias entre o relato de Diogo Gomes e o de Martinho da Boémia.

Apensado ao Itinerário do Dr. Jerónimo Munzer, anda uma Relação por ele redigida. Não se tem prestado atenção a esta obra, considerando-se geralmente que não passa da reprodução da de Diogo Gomes – Martinho da Boémia, foi escrita a D. João II, sugerindo-lhe um plano para atingir a Índia pelo Ocidente. A Relação de Munzer divide-se claramente em duas partes: a primeira, narra os Descobrimentos realizados em vida do Infante D. Henrique; a segunda, informa-nos acerca do clima e mar, flora e fauna, produções e comércio, guerras e religião da Guiné, bem como acerca das ilhas de São Tomé, Madeira e Açores.

O mais rico repositório de informações etnográficas sobre a África Ocidental setentrional é a coletânea de Valentim Fernandes, o Alemão. Valentim Fernandes não é navegador ou comerciantes, mas também não é cronista oficial, mas está em relações com todos estes meios. O chamado Manuscrito Valentim Fernandes constitui uma justaposição, quando não amálgama, de fontes heterogéneas que o alemão compilou, resumiu e redigiu sem qualquer perfeição ou sequer preocupação arquitetónica.

Temos ainda os relatos de João Fernandes e Álvaro Velho, cobrem todo o Saara Ocidental e a parte central e mesmo a Guiné ou Terra dos Negros, no sentido clássico do termo. As suas descrições não encerram qualquer elemento de maravilhoso ou sequer fantasia. Muito minuciosas, confirmaram, ou são confirmadas pelas fontes muçulmanas. São mais ricas mesmo, sobretudo para a Guiné Ocidental do que a obra Da África, Terceira Parte do Mundo, de João Leão, dito o africano. Uns 20 anos mais tarde, Duarte Pacheco Pereira principiará outro roteiro, o Esmeraldo de situ orbis (isto é, do sítio verde ou marítimo do orbe). O Esmeraldo é simultaneamente um compêndio de cosmografia e náutica astronómica que apresenta soluções novas e práticas, um roteiro muito completo no feixe de indicações de rumos, distâncias, enfim, é um compêndio de geografia comercial com elementos de geografia histórica. Mas o seu interesse e importância não reside somente na conexão das matérias que sistematicamente expõe, reside acima de tudo no espírito que o informa. Não é ainda o espírito científico, mas perpassa por toda a obra de Duarte Pacheco a ânsia da precisão, de mostrar pela experiência, há mesmo escrúpulo rigoroso na recolha dos dados. Escrito de 1505 a 1508, o Esmeraldo representa uma revolução cultural, de que não é aliás o único motor nem indício: a passagem de uma cultura sem sentido do possível e do impossível, baseada no “mais ou menos assim” e no “ouvir dizer” para o que poderíamos chamar o humanismo técnico: o sentido da precisão e exatidão, a preocupação pela medida, a busca de provas verificáveis.

Um notável artigo, até prova em contrário arruma as fontes quatrocentistas e estabelece o quadro informativo do que vínhamos a saber daquela costa ocidental africana, peça fundamental do projeto henriquino que abriu portas para o desencravamento do mundo.

Vitorino Magalhães Godinho (1918-2011)
Estátua de Zurara no pedestal do Monumento a Luís Vaz de Camões, de Victor Bastos
Mapa do rio Gâmbia e área limítrofes, c. 1732
Retrato de um africano, por Albrecht Dürer, 1508
Navegações de Cadamosto, nas suas duas viagens
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Nota do editor

Último poste da série de 7 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24375: Historiografia da presença portuguesa em África (371): As campanhas de pacificação na Guiné no livro "História do Exército Português", pelo General Ferreira Martins; Editorial Inquérito, 1945 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24369: Notas de leitura (1588): Entre o melhor da literatura de viagens do século XV (3): As viagens na África Negra de Luís de Cadamosto (1455-1456) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Outubro de 2020:

Queridos amigos,
A descrição desta segunda viagem trouxe uma inevitável polémica entre os historiadores dos Descobrimentos, não há consenso sobre as paragens cabo-verdianas que ele regista. Atenda-se que ele umas vezes fala do Cabo Verde continental, na primeira viagem faz até uma bela apreciação paisagística, esta segunda viagem leva-o até ao rio de Gâmbia, é certo e seguro que o Infante D. Henrique lhe pediu para explorar a costa abaixo, e assim o vemos no batizado Cabo Roxo, depois o Casamansa e depois o rio Grande ou Geba, onde ele deu conta do macaréu, coisa que nunca vira. É um mercador, percebe-se sem dificuldade que anda ali a desempenhar o papel de cronista, o registo que faz nas suas viagens prima pela curiosidade do seu olhar, tem conhecimentos de Náutica, fascina-se com a vegetação, com os animais e as aves, teme a aproximação das caravelas da terra, de vez em quando é patente a hostilidade quando chega. Quando acabamos esta saborosa leitura e sabemos que virão um Lemos Coelho, um André Donelha, um Duarte Pacheco Pereira, um André Álvares d'Almada, rendemo-nos a este espírito curioso, alguém que já tinha mundo e que mercadejava no Mediterrâneo e que regressa à sua terra onde exercerá cargos políticos. É uma peça-chave da nossa tão fecunda literatura de viagens, talvez a reportagem mais viva que guarda a historiografia deste projeto henriquino em que Cadamosto embarcou, pois não disfarça que também queria enriquecer.

Um abraço do
Mário



Entre o melhor da literatura de viagens do século XV (3):
As viagens na África Negra de Luís de Cadamosto (1455-1456)


Mário Beja Santos

A segunda viagem de Luís de Cadamosto aconteceu em 1456, ele e Antonieto Usodomar armaram duas caravelas e rumam para o rio de Gâmbia, partem com o agrado do Infante D. Henrique. “Saímos do lugar chamado Lagos, com vento próspero, e pusemos o rumo para as Canárias. Sendo o tempo favorável, não nos preocupámos de tocar nas ditas ilhas, mas navegámos em seguida para o Sul e com a corrente da água, que impetuosamente seguia para Sudoeste, andámos muito”. Assim chegaram ao Cabo Branco, foram colhidos por um forte temporal, mudaram de azimute, e depois avistaram terra, nada sabiam daquelas paragens. Começaram por uma ilha desabitada: “Havia imensa quantidade de pombos. No alto da montanha tiveram vista de três outras grandes ilhas de que não tínhamos dado conta, porque uma nos ficava a sotavento da parte do Norte, e as outras duas estavam na mesma linha, do lado oposto, da parte do Sul, também na nossa derrota, e todas à vista umas das outras”. E depois chegaram à vista das outras ilhas, correram ao longo da costa, desembarcaram, encontraram tartarugas, percorreram o rio. “À primeira ilha onde desembarcamos, demos o nome de ilha da Boa Vista, por ter sido a primeira vista da terra naquelas partes; e a esta outra, que nos parecia a maior das quatro, demos o nome da Ilha de Sant’Iago, porque fomos lançar âncora nela no dia de S. Filipe e Sant’Iago”. E daqui partiram para um lugar chamado Duas Palmas, entre Cabo Verde e rio de Senegal e assim chegaram ao rio de Gâmbia, não encontraram oposição de ninguém, encontraram uma ilha e puseram o nome de Sant’André, prosseguiram viagem pelo rio Gâmbia, apareceu alguém que percebia do intérprete que tinham levado que lhes disse que aquele país era Gâmbia, e que o seu principal senhor era Forosangoli, que vivia a nove ou dez jornadas, este senhor dependia do imperador do Mali, mas que havia muitos senhores menores, disse mesmo que os levaria a um deles chamado Batimansa, oferta que agradou aos navegadores.

Chegados ao destino, enviaram um presente ao senhor Batimansa, uma camisa. “Mandámos-lhe a dizer que tínhamos vindo de mandado do nosso Senhor, o Rei de Portugal, cristão, para travar com ele boa amizade e para saber se precisava das coisas dos nossos países, que todos os anos o nosso Rei lhas enviaria, e com muitas outras palavras”. Permaneceram onze dias naquele local, receberam muitas visitas, havia gente que queria vender coisas. “As coisinhas que nos traziam eram algodões, fiados de algodão e panos de algodão feitos à sua maneira. Traziam também muitos macacos e babuínos grandes e pequenos. Também traziam gatos de algália e peles deles para vender”.

Dá-nos um quadro bem curioso das almadias e do modo de remar. E tece também considerações sobre os usos e costumes, e não deixa de falar do clima: “Esta terra é muito quente, e quanto mais se anda para o Sul tanto mais parece pedir a razão que as regiões sejam quentes; e sobretudo neste rio havia muito mais calma do que no mar, por estar povoado de muitas árvores e muito grandes. Da grandeza destas digo que estando nós a fazer aguada numa fonte junto à margem do rio, havia uma árvore grandíssima e muito grossa; porém, a altura não era proporcional à grossura, porque julgámos que tivesse de altura uns 20 passos, e a grossura, mandando-a medir, achámos umas 17 braças de circunferência, no pé”.

Também muito saborosa é a descrição que faz dos elefantes, deram-lhe a comer carne de um deles, achou-a dura e desenxabida. “Trouxe um dos seus pés e parte da tromba para o navio, e também muitos dos cabelos do corpo, que eram pretos e compridos um palmo e meio e mais; e tudo, juntamente com parte daquela carne que foi salgada apresentei depois em Portugal ao dito Senhor D. Henrique, que as recebeu como grande presente, por serem as primeiras coisas que tinha recebido daquele país, descoberto por indústria sua”. Volta a fazer comentários sobre as coisas que viu no rio de Gâmbia, e põem-se ao caminho para Casamansa, onde também havia um senhor chamado Casamansa. Daqui partiram para o Cabo Roxo, chegaram depois à boca de um rio de razoável grandeza, deram-lhe o nome de rio de Sant’Ana, continuaram e encontraram outro rio a que puseram o nome de São Domingos, e assim chegaram à boca de um grandíssimo rio, que julgaram ser um golfo. “Estivemos sobre a embocadura deste grande rio, ou Rio Grande, dois dias, e a Estrela do Norte aparecia aqui muito baixa. Neste lugar encontramos uma grande contrariedade, que não há em outro lugar, pelo que pude ouvir, e foi que, havendo aqui maré de água enchente e vazante, como em Veneza e em todo o poente, e enquanto em toda a parte cresce seis horas e baixa outras seis, aqui cresce quatro horas e baixa oito, e é tão forte o ímpeto da corrente da dita maré, quando começa a encher, que é quase incrível, porque três âncoras na proa mal nos podiam segurar, e com esforço, e momentos houve em que a corrente nos fez fazer à vela à força, e não sem perigo, porque tinha mais força do que as velas com o vento”. Cadamosto, sem o saber, estava a experimentar o macaréu, será provavelmente esta a primeira descrição feita por um europeu deste fenómeno da natureza.

E deste modo finaliza a sua segunda viagem: “Partimos da embocadura deste grande rio para voltar a Portugal, e fizemo-nos em direção àquelas ilhas, que estavam distantes da terra firme umas 30 milhas. Chegámos a elas, são duas grandes e algumas outras pequenas. Estas duas grandes são habitadas por negros e são muito baixas, mas abundantes de belíssimas árvores, grandes, altas e verdes. Também aqui não pudemos falar, porque não nos entendiam, nem nós a eles, e partindo dali, fomos para os nossos países dos cristãos, para os quais, por nossas jornadas, tanto navegámos, que Deus por sua misericórdia, quando lhe aprouve, nos conduziu a bom porto”.

Texto de inexcedível beleza e de uma incontornável riqueza para esta literatura de viagens encetada no século XV.


Guerreiro guineense, gravura de Balthazar Springer, 1509
Mulher guineense e filhos, também gravura de Balthazar Springer, 1509
Guinéus, também gravura de Balthazar Springer, 1509
Carta da África Ocidental (pormenor), Paris, 1667
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Nota do editor

Último poste da série de2 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24362: Notas de leitura (1587): Entre o melhor da literatura de viagens do século XV (2): As viagens na África Negra de Luís de Cadamosto (1455-1456) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 2 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24362: Notas de leitura (1587): Entre o melhor da literatura de viagens do século XV (2): As viagens na África Negra de Luís de Cadamosto (1455-1456) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Outubro de 2020:

Queridos amigos,
Continuamos na companhia de Luís de Cadamosto, chegou-se até ao rio de Gâmbia e regressa-se a Portugal. Esperem agora pela segunda viagem, desta vez vai até à região do Batimansa, rei Mandinga, continuará a viagem para Sul até alcançar o rio Casamansa, depois Cabo Roxo, rio de S. Domingos ou Cacheu, chegará ao rio Grande, o outro nome dado ao rio Geba. A etnologia mas sobretudo a literatura de viagens ficarão com uma dívida enorme com este jovem mercador veneziano sempre atento aos usos e costumes, ao funcionamento dos mercados, às culturas, à postura do comer, à prática religiosa, vimos aspetos muito saborosos da sua digressão pelo país de Budomel, como Cadamosto discute sem acrimónia aspetos religiosos com um muçulmano, a sua curiosidade sempre desperta pelos animais e pelas aves, revelou-se o narrador que seguramente irá influenciar os continuadores das viagens que se seguirão à sua, tome-se a narrativa destas duas navegações como um dos mais espantosos guias de viagens de todos os tempos.

Um abraço do
Mário



Entre o melhor da literatura de viagens do século XV (2):
As viagens na África Negra de Luís de Cadamosto (1455-1456)


Mário Beja Santos

O jovem veneziano Luís de Cadamosto, por acaso do destino, veio parar a um porto algarvio, o Infante D. Henrique soube da sua existência, conversaram e pouco depois partiu uma caravela a caminho do Cabo Branco, Cadamosto era mercador e soou-lhe bem a expetativa de fazer bons negócios na África Negra que já aqui se descreveu como viu os arquipélagos da Madeira e das Canárias, passou por Arguim e neste exato momento, depois de nos contar como vivem os azenegues, os pardos, chegou ao país de Budomel, segundo os especialistas estão aqui algumas das descrições fulgurantes de alguém que não era cronista mas que tinha um olhar apurado para ver os locais e as pessoas. Começa assim:
“Passei o dito rio de Senegal com a minha caravela, e navegando cheguei ao país de Budomel, lugar distante do dito rio cerca de 800 milhas pela costa, a qual é toda terra baixa e sem montes. Este nome Budomel é título de senhor, e não nome próprio do lugar. Neste lugar me detive com a minha caravela para tirar língua deste senhor, embora tivesse recebido informação de certos portugueses que tinham tido trato com ele, de que era pessoa e senhor de bem, e em quem se podia ter confiança, e realmente pagava o que tomava”.

Cadamosto não vai desprovido, leva cavalos, pano de lã, trabalhos de seda mouriscos e algo mais. Budomel veio ao seu encontro, convidou-o para sua casa, o veneziano deu-lhe sete cavalos com os seus arneses. “Antes de partirmos, presenteou-me logo com uma rapariga de doze para treze anos, muito linda, por ser muito negra, e disse que ma dava para serviço da minha câmara; aceitei-a e enviei-a para o meu navio”. Budomel pôs ao serviço de Cadamosto um seu neto, chamado Bisboror, acolheu-o quase todo o mês de novembro. E aproveita a oportunidade para descrever usos e costumes. “O rei deste reino só tem aldeias de casas de palha, e Budomel era senhor de uma parte deste reino, que é coisa pequena. Não são senhores porque sejam ricos de tesouros ou de dinheiro, porque nada disso têm; mas podem-se chamar verdadeiramente senhores de cerimónias e de séquitos de gentes, pois sempre estão acompanhados e reverenciados por muitos, e são muito mais temidos pelos seus súbditos que os nossos senhores daqui”.

Descreve a casa de Budomel, as mulheres, as gentes que o servem, as cerimónias de que usa o rei ao dar audiências, oram em conjunto na mesquita, discutem a fé sem qualquer ponta de fanatismo, veja-se o que se passou depois de algumas orações na mesquita: “Quando tinha acabado, perguntava-me o que me parecia; e por ter muito prazer em ouvir falar das coisas da nossa fé, dizia amiúde que lhe narrasse algumas, de forma que eu lhe dizia que a dele era falsa, e que os que lhes mostravam tais coisas ignoravam a verdade; e estando presentes aqueles seus árabes, reprovava a lei de mafoma, e mostrava ser a nossa fé verdadeira e santa, enquanto eu fazia desgostar aqueles seus mestres da lei. Do que este senhor se ria, e dizia que julgava fosse boa a nossa fé e não podia ser diversamente, porque Deus que nos tinha dado tantas coisas boas e ricas, tanto engenho e sabedoria, não teria deixado de nos dar também boa lei”.

Descreve o modo de comer, fala das produções do reino, de como se lavra, fala-nos dos animais que ali existem e deslumbra-se com os elefantes: “É animal que não ataca o homem se este o não ataca; e o modo de o elefante atacar o homem é dar-lhe com a trompa comprida uma pancada tão forte de baixo para cima que atira com ele às vezes quase como um tiro de seta”. Deslumbra-se igualmente com as aves e dá-nos um quadro como funciona o mercado dos negros e das coisas que aí negoceiam:
“Aqui vinham homens e mulheres do país, de quatro ou cinco milhas ao redor, porque os de mais longe iam a outros mercados; e nestes mercados compreendi muito bem que esta gente é pobríssima pelas coisas que levavam ao mercado a vender, que eram algodões, mas não em grande quantidade, fiados também de algodão, panos de algodão, legumes, azeite, milho, gamelas de madeira, esteiras de palma e um pouco de todas as outras coisas que usam para viver (…) Estes negros, quer os homens quer as mulheres, vinham ver-me por maravilha; parecia grande coisa ver cristãos e não menos se admiravam da minha brancura que do meu traje, que era ao uso da península hispânica um jubão de damasco preto e uma capa por cima; olhavam para o pano de lã que eles não têm e para o jubão, e muito se admiravam; alguns me tocavam as mãos e os braços e com saliva me esfregavam para ver se a minha brancura era tinta ou carne e vendo que efetivamente era carne ficavam maravilhados”.

São olhares alargados que passam pelos cavalos, os costumes das mulheres, os instrumentos musicais. Depois encontra Antonieto Usodomar, um genovês que vinha com duas caravelas, já saiu do país do senhor Budomel, resolveu ir mais adiante, passou Cabo Verde (em território africano), encontrou no alto mar o genovês, justifica porque é que Cabo Verde é assim chamado e entra em nova descrição, a dos Barbacinos e dos Serreres, estamos na África Negra, mas estes dois povos não estão sujeitos ao rei do Senegal. “São homens muito negros e bem encorpados, a terra é bastante rica de bosques e abundante de lagos e de águas, e por isso se consideram muito seguros, não sendo possível entrar nela senão por passos estreitos; por isso não temem nenhum senhor circunvizinho, e aconteceu muitas vezes, em tempos passados, que alguns reis de Senegal quiseram fazer-lhes guerra para os subjugar e sempre foram derrotados pelas duas nações, quer pelas frechas ervadas (flechas envenenadas), quer pelo país ser muito áspero".

Assiste à crueldade de ver trucidar alguém que manda a terra, resolve não mexer e prossegue viagem, a próxima etapa é o país de Gâmbia. Há encontro com gente que vem em canoas, mas não comunicam. Entra finalmente no rio Gâmbia, chega gente, desta feita há cumprimentos, e o comentário de Cadamosto é precioso:
“Suspenderam eles a remada e levantaram os remos para o ar, ficando a olhar para nós, como para coisa maravilhosa; e examinando-os também, julgámos que poderiam estar, quando muito, 130 a 150 negros, que nos pareceram homens belíssimos de corpo, muito pretos, todos vestidos de camisas brancas de algodão, com chapelinhos brancos na cabeça, quase à moda dos tudescos, salvo que de cada lado tinham uma espécie de asa branca, com uma pena no meio do dito chapelinho, quase como querendo dar a entender que eram homens de guerra. À proa de cada uma das almadias estava um negro, em pé, com uma adarga redonda no braço, que nos parecia ser de couro; e, assim, nem eles atirando nem nós fazendo movimento algum contra eles, foram-se aproximando, e chegados a eles, sem outra saudação, largaram os remos e começaram todos a atirar com os arcos. Os nossos navios, à vista do assalto, descarregaram da primeira vez quatro bombardas. Ao ouvi-las, pasmados e atónitos pelo grande estrondo, os negros largaram os arcos, e olhando uns para um lado, outros para o outro, estavam admirados de verem as pedras das bombardas ferirem a água junto deles; e ficaram muito tempo a olhar para elas, mas, não vendo outra coisa, perderam o medo ao estrondo e, depois de termos atirado muitos tiros, pegaram nos seus arcos e começaram novamente a atirar com grande ardor, aproximando-se dos navios um tiro de pedra. Os marinheiros começaram a alvejá-los com as suas bestas e o primeiro que descarregou foi um filho bastardo daquele gentil homem genovês, que feriu um negro no peito, que logo caiu morto na almadia. Ao ver isto, tomaram os seus aquela frecha e consideraram-na muito, quase maravilhados daquela arma; mas nem por isso deixaram de a atirar aos navios vigorosamente, e as das caravelas a eles, de forma que em pouco tempo foram mortos muitos negros, e dos cristãos, graças a Deus, nenhum foi ferido”.

Os atacantes recuam e depois procuraram chegar à fala com eles por meio de intérpretes, dizem quem são e de onde vêm, desejavam ter amizade e boa paz com eles. Responderam os da terra que tinham notícia como nós tratavam os negros do Senegal, tinham por certo que os cristãos comiam carne humana e que compravam os negros só para os comer, e que por isso não queriam de forma alguma a amizade de quem vinha e que nos queriam matar a todos, e depois de toda esta conversa fugiram para terra e assim acabou a guerra. Cadamosto e o genovês saem dali, vão na direção de Cabo Verde para voltar para Portugal. Ainda faz uma descrição primorosa da astronomia e aqui acaba a primeira navegação. Vamos agora falar da viagem seguinte, aquela em que chegaram a algumas ilhas de Cabo Verde, isto já em 1456.

(continua)

Carta da África Ocidental (pormenor), Paris, 1667
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Nota do editor

Último poste da série de 29 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24350: Notas de leitura (1586): Entre o melhor da literatura de viagens do século XV (1): As viagens na África Negra de Luís de Cadamosto (1455-1456) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 29 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24350: Notas de leitura (1586): Entre o melhor da literatura de viagens do século XV (1): As viagens na África Negra de Luís de Cadamosto (1455-1456) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Outubro de 2020:

Queridos amigos,
São duas belas traduções, acrescendo que a edição francesa, da categorizada Chandeigne, que tanto prestigia a cultura portuguesa vem acompanhada de comentários e notas de grande mérito, tornam ainda mais esclarecedoras as narrativas deste jovem veneziano que foi seduzido pela proposta do infante D. Henrique de ir até ao Senegal e à Gâmbia, acabará por fazer duas expedições, e sendo ainda assunto de grande polémica acabou por descobrir algumas das ilhas de Cabo Verde. Importa insistir que ele não era cronista, daí o colorido do seu estilo e a completa liberdade de expressão, que iremos depois ver nos seus diálogos com o rei Budomel e o seu neto. Poucas obras do século XV podem ombrear com Cadamosto, ele viajará até ao Casamansa e ao Rio Grande, irá mesmo descrever o fenómeno do macaréu. É um autor inesquecível, tenho grande satisfação em trazê-lo aqui numa revisitação.

Um abraço do
Mário



Entre o melhor da literatura de viagens do século XV (1):
As viagens na África Negra de Luís de Cadamosto (1455-1456)


Mário Beja Santos

Não é a primeira vez que o nome de Luís de Cadamosto é aqui referenciado, mas o facto de se ter encontrado uma tradução de 1944, do Instituto para a Alta Cultura e edição francesa de 1994, Edições UNESCO e Edições Chandeigne, obviamente com a riqueza de um tradutor italiano, por um lado e edição francesa cheia de pormenores, por outro, tudo concorre para voltarmos à fala com este jovem patrício veneziano que em 1455, no decurso de uma escala involuntária no Sul de Portugal, se deixou convencer pelo Infante D. Henrique para uma viagem a África. O que mais nos toca nestas narrativas é que o olhar de Cadamosto não é de um cronista oficial, ele era um mercador sem preconceitos, um jovem homem cheio de curiosidades a quem repugnava a efabulação, revela-se dotado de uma surpreendente abertura de espírito. A prova disso são os seus testemunhos: a descrição de paisagens e peripécias da navegação alterna com as da vida quotidiana dos berberes azenegues e os negros da Guiné, o que vai conferir à narrativa um grande interesse etnológico. Os seus diálogos com o rei Budomel e o seu neto Bisboror ficaram célebres do seu bom humor e da sua vivacidade. E importa não esquecer que as viagens de Cadamosto estão na primeira linha dos testemunhos ocidentais da África Negra.

Abre a descrição da primeira viagem com uma certa eloquência: “Fui eu, Luís de Cadamosto, o primeiro que saí da mui nobre cidade de Veneza para navegar o mar Oceano, fora do estreito de Gibraltar para as partes do meio-dia, nas terras dos negros da baixa da Etiópia”. Assume que vai falar de um outro mundo. Apresenta-nos o Infante D. Henrique e as explorações náuticas a que se dedicava, elogia as caravelas, não esconde que queria trabalhar para adquirir meios e situa o encontro com o Infante: “Embarquei nas nossas galés de Flandres, saímos de Veneza em 1454, navegámos por nossas jornadas até que nos encontrámos na Península Hispânica. E encontrando-me, pelo tempo contrário, no Cabo de S. Vicente, deu-se o caso de não muito longe dele estar o referido senhor Infante D. Henrique numa povoação vizinha chamada Raposeira”.

O Infante convoca-o, quem o procura leva amostras de açúcares da ilha da Madeira e de sangue de drago. Ocorre o encontro, o infante faz-lhe a proposta de partir à procura de novos mundos, apraza-se um contrato, arma-se uma caravela nova, era patrão um Vicente Dias, natural de Lagos, em 22 de março de 1455 rumam para a Madeira, passam por Porto Santo pois a ilha da Madeira onde ele descreve as coisas que aqui se produzem. Partem da Madeira para as ilhas Canárias, outra descrição preciosa e depois navegam para o Sul, como ele escreve na direção da Etiópia, chegam a Arguim, fala no deserto do Sara e diz: “É muito grande, a travessia demora 50 a 60 dias a cavalo. Este deserto vem beber no mar Oceano, na costa, que é toda arenosa, branca e seca; é terra baixa, toda igual e não mostra ser mais alta num lugar que no outro, até ao Cabo Branco”. Aproveita para falar dos peixes e de povoações por onde passam as caravanas que vêm de Tombuctu, quanto a quem ali vive eram maometanos que vagueiam pelos desertos e são homens que vão às terras dos negros. “São em grande número e têm grande abundância de camelos, nos quais levam o cobre e a prata da Berberia e outras coisas para Tombuctu e para as terras dos negros, e daí trazem oiro e malagueta que trazem para cá. São homens pardos, e vestem umas túnicas brancas sobre o corpo. Os homens trazem um lenço à mourisca na cabeça e andam sempre descalços”.

Cadamosto refere as operações da feitoria de Arguim, fala nos Azenegues que trata como homens mulatos e que habitam em alguns lugares da costa que fica para além do Cabo Branco. Ele refere o império Melli, seguramente o império Mali, dizendo que há muito calor, que não há no dito país animais quadrúpedes e que os Árabes e Azenegues adoecem e morrem devido ao grande calor. O sal era a mercadoria mais apreciada e descreve com enorme vivacidade os termos de um comércio mudo, os mercadores não se viam uns aos outros. “Visto o sal, põem uma quantidade de oiro na frente de cada monte e voltam para trás, deixando o oiro e o sal, e retiram-se. Voltam os negros do sal, e se a quantidade de oiro lhes não agrada, deixam o dito oiro com o sal, e voltam para trás, após o que vêm os outros negros do oiro, e levam o monte que encontram sem oiro; e aos outros montes de sal tornam a pôr mais oiro, se lhes parece, ou deixam o sal. E deste modo fazem o seu comércio sem se verem uns aos outros, nem falar-se, por um longo e antigo costume”.

Cadamosto quer saber mais sobre as gentes do império do Mali, outra descrição curiosa. Voltando aos Azenegues (pardos ou mauritanos), dá pormenores: “Nesta terra dos pardos não se bate moeda alguma, todo o comércio deles é trocar coisa por coisa, e duas por uma, e desta maneira vivem”. E assim chegamos à descrição do rio de Senegal, pensa-se que era o Níger, já tinham passado o Cabo Branco e assim chegaram à terra dos negros: “Cinco anos antes que eu fizesse esta viagem, este rio foi descoberto por três caravelas do dito Infante que entraram dentro dele, e fizeram paz com estes negros, de maneira que começaram a fazer comércio”. E prova da muita ignorância que ainda havia quanto à cartografia, veja-se o que ele escreve sobre o rio de Senegal: “Este rio, segundo dizem os sábios, é um ramo do rio Gion que vem do Paraíso Terreal, ramo que foi pelos antigos chamado Níger, e vai banhando toda a Etiópia e a aproximando-se ao mar Oceano, onde desagua e faz muitos outros braços e rios, além deste de Senegal. Outro ramo do dito Gion é o Nilo, que passa pelo Egito e desemboca no nosso mar Mediterrâneo. Esta é a opinião daqueles que têm dado a volta ao mundo”.

Chegou à terra dos Jalofos, conta como se elegem os reis do Senegal e como se vive:
“Este rei é semelhante ao dos Cristãos, porque o seu reino é de gente selvagem e pobríssima, e não há cidade alguma murada, senão aldeias com casas de palha, pois não as sabem fazer de paredes, por não terem cal nem pedras para as construir. O rei não tem rendimento certo de tributos, mas todos os anos os senhores da terra, para que se dê bem com eles, lhe fazem presentes de alguns cavalos, que são muito apreciados por haver falta deles, e fornecimentos de cavalos, e outros animais, como vacas e cabras, legumes, milho e coisas semelhantes. Mantém-se este rei também de roubos, que manda fazer a muitos escravos, quer no país, quer no dos vizinhos. Desses escravos se vale por muitos modos, sobretudo em cultivar certas possessões que lhe são reservadas e também vende muitos deles aos azenegues e mercadores árabes que aí chegam com cavalos e mais coisas; e vende outros também aos cristãos, depois que eles começaram a negociar mercadorias naqueles países”.

Diz que a religião destes negros é a maumetana, mas não estão muito firmes na fé. E dá-nos um texto vivacíssimo quanto a trajes e costumes dos negros: “Esta gente quase toda anda sempre nua, exceto um coiro de cabra posto em forma de braga, com que cobrem as suas vergonhas. Mas os senhores e os que podem um pouco vestem camisas de algodão, porque naqueles países nascem algodoeiros. As mulheres fiam e fazem panos de um palmo de largura, e não sabem fazê-los mais largos porque não sabem fazer os pentes para os tecer, de forma que cozem juntos quatro ou cinco daqueles panos de algodão, quando querem fazer algum trabalho largo”. Observa a natureza das guerras e do armamento usado, guerra entre vizinhos, não trazem couraças, só têm escudos redondos e largos, usam azagaias que são dardos ligeiros, dardos que têm um palmo de ferro lavrado com barbas miúdas e usam também alfanges mouriscos que fazem com o ferro da Gâmbia. “As guerras deles são muitíssimo mortíferas, por estarem desarmados; os seus golpes não falham, e matam-se tanto como feras, e são muito atrevidos e bestiais, pois que em qualquer perigo antes se deixam matar do que fugir, ainda que possam fazê-lo”.

E passa o rio Senegal e chega ao país do Budomel.

(continua)
Guerreiro guineense, gravura de Balthazar Springer, 1509
Mulher guineense e filhos, também gravura de Balthazar Springer, 1509
Guinéus, também gravura de Balthazar Springer, 1509
Carta da África Ocidental (pormenor), Paris, 1667
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Nota do editor

Último poste da série de 26 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24343: Notas de leitura (1585): "Os Manuscritos de R.", por Jaime Froufe Andrade, segunda edição de Novembro de 2019, um monumento literário aos antigos combatentes que Portugal esqueceu (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 3 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23321: Notas de leitura (1451): “Viagens”, de Luís de Cadamosto, introdução e notas de Augusto Reis Machado, na Biblioteca das Grandes Viagens, Portugália Editora, sem data (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Setembro de 2019:

Queridos amigos,
Estas navegações e estes documentos narrativos abriram campo a um conhecimento que estilhaçou ideias pré-concebidas durante séculos. Dos trabalhos de José Silva Horta depreende-se claramente que havia conceções cristalizadas ao longo de séculos sobre esses povos desconhecidos tratados como descrentes e selvagens. Os relatos entremeiam dados que a cultura europeia demorou a assimilar: os povos pardos, fundamentalmente islamizados, seguia-se o grande deserto, em território longínquo estava a mítica Tombuctu, longe ficava o Benim, pela mesma orla costeira chegava-se à terra dos Negros, os navegadores informavam que havia uma economia de troca, reportaram usos e costumes, havia claros indícios da presença do islamismo e também da idolatria, gradualmente a aceitação das trocas. Esses mesmos autores da literatura de viagens iriam lançar outras novas questões, importantes para a divulgação do Cristianismo, traziam já subjacente a ideia de que os povos civilizadores tinham muito trabalho pela frente para tirar da selvajaria aqueles povos que eram vistos manifestamente como atrasados, a despeito das suas manifestações culturais e das boas práticas de acolhimento. Assim entrou em germinação a mentalidade colonizadora, só contestada e repudiada no século XX.

Um abraço do
Mário



Viagens de Luís de Cadamosto e Pedro de Sintra:
Relatos incontornáveis e de alto nível da literatura de viagens (3)


Beja Santos

De Cadamosto e Pedro de Sintra já aqui se fez larga referência ao trabalho do professor Damião Peres na Academia das Ciências, em 1948. Procura-se agora cotejar alguns aspetos essenciais de uma obra de divulgação que estranhamente não se reeditou, intitulada “Viagens”, de Luís de Cadamosto, introdução e notas de Augusto Reis Machado, na Biblioteca das Grandes Viagens, Portugália Editora, sem data. Esta obra de divulgação foi extraída da Coleção de Notícias para a História e Geografia das Nações Ultramarinas que vivem nos Domínios Portugueses, tomo organizado pelo académico Sebastião Francisco de Mendo Trigoso (1773-1821). Figura nas anteriores edições com o título de “Navegações”.

Voltando um pouco atrás, recorda-se ao leitor que esta literatura de viagens tem um peso documental inexcedível para o trabalho historiográfico. Depois de fazermos referência aqui a Cadamosto iremos até uma obra intitulada “O Confronto do Olhar, o encontro dos povos na época das Navegações Portuguesas”, Editorial Caminho, 1991, com as colaborações de Luís de Albuquerque, António Luís Ferronha, José da Silva Horta e Rui Loureiro. José da Silva Horta vai situar-nos neste espaço da costa africana e dá-nos a imagem do africano pelos portugueses antes dos contatos e em sequência os primeiros olhares sobre o africano do Sara Ocidental à Serra Leoa (meados do século XV – início do século XVI). Cadamosto depois de nos descrever o país da Gâmbia, como navegavam os negros nas suas almadias, como se estudavam as distâncias, e isto num lindo capítulo em que refere a Estrela Polar e as seis estrelas do polo antártico, referencia quem foram os primeiros a descobrir as ilhas de Cabo Verde, assunto que, como é de todos sabido, lançou grande polémica na historiografia dos séculos XIX e XX. Navegando pela costa africana entre o cabo Verde e o Senegal chegaram a um lugar onde foram levados à presença do Batimansa, sucedem-se as trocas. Cadamosto pronuncia-se sobre a religião, modo de viver e trajar destes negros, uns praticantes da idolatria, outros praticantes da seita de Mafoma. “No modo de viver, quase todos se governam conforme os negros do reino do Senegal. Comem carne de cão, que nunca ouvi dizer que se comesse noutra parte. Os seus vestidos são de algodão e se os negros do Senegal andam quase todos nus, estes pela maior parte andam vestidos. As mulheres vestem todas por uma mesma forma, salvo que quando são pequenas gostam de fazer alguns lavores sobre a pele, picando com agulhas os peitos, braços e pescoço, os quais parecem desses bordados de seda que se usam nos lenços e são feitos com fogo de modo que em tempo algum se apagam”. Fala dos elefantes, do descobrimento do rio de Casamansa cujo rei é igualmente o Senhor Casamansa, avança-se para a Guiné, tal como ela hoje existe, regressa-se depois a Portugal.

A viagem de Pedro de Sintra, escudeiro do Infante D. Henrique, faz parte dos relatos de Cadamosto. É a primeira referência que se faz ao cabo de Sagres da Guiné, a 80 milhas do cabo da Verga. “Dizem os marinheiros, pelas informações que houveram, que os seus habitantes são idólatras, adoram estátuas de pau com a forma humana. São de uma cor mais amulatada do que negra e têm alguns sinais feitos com ferro em brasa pela cara e pelo resto do corpo”. Trata-se de um relato que revela claramente que as navegações tinham atingido o cabo Roxo e se aproximavam da costa da Libéria.

Os trabalhos de José da Silva Horta no já aludido livro “O Confronto do Olhar” têm a ver com a imagem do africano antes e depois dos contatos estabelecidos.

Antes, havia a ideia do negro da Etiópia, do egípcio, pensava-se no mouro, e admitia-se a existência de um reino distante com um senhor cristão, o Preste João. José da Silva Horta faz um levantamento das expressões à volta do negro, como é óbvio pouco valorativas e não abonando gente civilizada. Havia, insista-se, no imaginário, o tal Preste João que era pensado como patriarca de Núbia e Etiópia que “senhoreia mui grandes terras e muitas cidades de cristãos mas que são negros como a pez e queimam-se com fogo em sinal de Cruz em reconhecimento do batismo, e como quer que estas gentes são negros, mas são homens de bom entendimento e de bom siso”. Em jeito de conclusão, o historiador diz que a imagem do africano em Portugal no século XIV inícios do século XV é marcada pela permanência de estereótipos negativos da herança medieval anterior, associados à cor negra e ao Negro.

Tudo se alterará a partir das navegações nas costas do Sara Ocidental e com as motivações do projeto henriquino, os propósitos de cristianização não chocavam com a escravatura, assentava-se numa sobrevalorização da alma sobre o corpo, e os relatos da literatura de viagens vão emitir juízos sobre a vida nómada dos Árabes, dos Azenegues e dos Negros, fala-se permanentemente em bestialidade, credos errados, adoração de ídolos em terras verdes e luxuriantes. José da Silva Horta elenca vários testemunhos como os de Cadamosto e Pedro de Sintra, também os de Diogo Gomes, recorde-se que Pedro de Sintra percorreu a costa da Guiné, antes deixou-nos um retrato dos Mandingas e dos Jalofos senegaleses, retratou as feiras dos Banhuns entre o rio Casamansa e o Cacheu, também a crença dos habitantes da Serra Leoa e enfatiza a perenidade do Homem Selvagem nas representações do africano, com toda a ambiguidade entre homem e animal que lhe é própria. Duarte Pacheco Pereira fala na Serra Leoa em que há gente belicosa, negros que comem outros homens, que têm idólatras e feiticeiros, negros que têm dentes limados e agudos como o cão. E a aproximação entre o homem e o animal é bem clara: “Nesta serra há muitos elefantes e onças e outras muito variadas animálias que nesta Espanha nem em toda a Europa não há. Também há aqui homens selvagens, a que os Antigos chamaram Sátiros, e são todos cobertos de um cabelo ou sedas quase e tão ásperas como de porco; e estes parecem criatura humana e usam o coito com suas mulheres como nós usamos com as nossas; e em vez de falarem, gritam quando lhes fazem mal”.

O historiador também observa que num tempo em que dificilmente seria pensável a existência de verdadeiros homens fora da geração de Adão, o próprio Negro via-se envolvido em dúvidas sobre a sua humanidade, e despedimo-nos exatamente com uma observação de Duarte Pacheco Pereira:
“Muitos Antigos disseram que, se alguma terra estivesse oriente e ocidente com outra terra, que ambas teriam um grau do Sol igualmente, e tudo seria de uma qualidade. E quanto à igualeza do Sol é verdade; mas como quer que a majestade de grande natureza usa de grande variedade, em sua ordem, no criar e gerar das coisas, achámos, por experiência, que os homens deste promontório de Lopo Gonçalves (cabo Lopez) e toda a outra terra de Guiné são assaz Negros, e as outras gentes que jazem além do mar Oceano a ocidente (que tem o grau do Sol por igual, como os Negros da dita Guiné) são pardos quase brancos; e estas são as gentes que habitam na terra do Brasil. E que se algum queira dizer que estes estão guardados da quentura do Sol, por nesta região haver muitos arvoredos que lhe fazem sombra, e que, por isso, são quase alvos, digo que se muitas árvores nesta terra há, que tantas e mais, tão espessas há nesta parte oriental de aquém do oceano de Guiné. E se disserem que estes de aquém são negros porque andam nus e os outros são brancos porque andam vestidos, tanto privilégio deu a natureza a uns como a outros, porque todos andam segundo nasceram; assim que podemos dizer que o Sol não faz mais impressão a uns que a outros. E agora é para saber se todos são da geração de Adão”.

Iniciavam-se os encontros, iriam eclodir os grandes debates sobre se os negros tinham alma, demorou tempo a compreender que a gente de todas as etnias e cores faziam parte da mesma humanidade. Perceba-se, pois, que o grau de dúvidas culturais e civilizacionais reveladas nestes encontros obedeciam a uma estrutura mental sedimentada durante séculos.

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Nota do editor

Último poste da série de 30 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23310: Notas de leitura (1450): “Viagens”, de Luís de Cadamosto, introdução e notas de Augusto Reis Machado, na Biblioteca das Grandes Viagens, Portugália Editora, sem data (2) (Mário Beja Santos)